RESUMO: Ainda que detentores do status de sujeitos de direitos, a caracterização de crianças e adolescentes como possuidores de direitos humanos sexuais e reprodutivos é controversa em determinados setores da sociedade, incluindo aqui agentes públicos, conforme será demonstrado. Imersas nesta polêmica adultocêntrica estão meninas violadas sexualmente. Justifica-se a presente investigação na necessidade de compreender os reflexos desse debate na efetivação do abortamento legal. Através de dados obtidos no Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde do Brasil (DATASUS), interpretados por meio de ampla doutrina interdisciplinar em matéria de direitos humanos, infância e juventude, o objetivo da pesquisa é analisar as possíveis razões para a reduzida efetivação do direito ao aborto, apesar dos números alarmantes de abuso sexual e gravidez entre meninas de 10 e 14 anos. A hipótese inicial seria a de que os contínuos entraves e a necessidade de judicialização para a efetivação de direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes acaba por dissuadir estas meninas e suas famílias da realização do aborto legal, acrescentando ao abuso sexual sofrido nuances de violência institucional pelo Sistema de Justiça, além de uma maternidade compulsória. Como metodologia, se escolheu a pesquisa bibliográfica e a análise doutrinária.
PALAVRAS-CHAVE: Aborto legal; Criança e Adolescente; Efetivação de Direitos Sexuais e Reprodutivos; Judicialização.
INTRODUÇÃO
A polêmica na atribuição de direitos sexuais e reprodutivos à crianças e adolescentes, sustentada inclusive por indivíduos integrantes do Sistema de Garantia de Direitos, é tomada como fio condutor da presente pesquisa ao investigar justificativas para a reduzida efetivação do aborto legal entre meninas de 10 a 14 anos, vítimas de estupro de vulnerável.
O primeiro item inicia demonstrando a diversidade do que compõe a efetivação destes direitos sexuais e reprodutivos, perpassando o livre acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, a prática sexual livre e com segurança, o direito de escolha reprodutiva de forma livre e informada e ainda o direito a exercer a reprodução sem julgamento, entre outros. De tal forma, o debate principia buscando demonstrar que os direitos sexuais e reprodutivos de um indivíduo de forma alguma se resumem apenas à livre prática sexual.
A discussão segue sendo aprofundada através de uma abordagem interdisciplinar, sendo introduzida uma perspectiva psicológica de deslegitimação da infância e adolescência como faixas etárias detentoras dos direitos humanos aqui discutidos. Defende-se que a perseguição disciplinar e a perspectiva unicamente violadoras destes direitos originam, também mas não somente, a problemática aqui discutida, que passa a ser demonstrada através dos números obtidos junto ao DATASUS.
Evidenciada a inefetividade do direito ao abortamento legal, o item seguinte divide-se entre explorar as causas e as consequências da judicialização da infância e do direito ao abortamento, fazendo uso novamente da interdisciplinaridade para identificar fatores responsáveis por esta obstaculização.
O estudo do comportamento social frente a um caso concreto de negativa de abortamento legal a uma criança grávida conduz a primeira parte do item dois. Por sua vez, a condução da segunda parte do último item da pesquisa se dá pela análise de um possível posicionamento menorista na judicialização da infância brasileira.
1.Crise na efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes
De acordo com André de Carvalho Ramos, direitos sexuais seriam aqueles relacionados ao "exercício e vivência sexual dos seres humanos", o autor classifica-os como um direito humano, e afirma sua origem em outros direitos, tais como a igualdade, o respeito à integridade física e psíquica, a liberdade e a autonomia (RAMOS, 2022, p. 1137).
Esta primeira correlação permite aferir que a efetivação de direitos sexuais implica não somente a simples autonomia do indivíduo ao engajamento em práticas sexuais, mas também todas as garantias que a vivência da sexualidade humana, em sua pluralidade, demanda:
1. O direito a serviços de saúde sexual que garantam privacidade, confidencialidade e atendimento de qualidade, sem discriminação;
2. O direito à informação e à educação sexual;
3. O direito à escolha, tanto do parceiro quanto sobre ter ou não relações sexuais, independente da reprodução;
4. O direito de viver plenamente a sexualidade e identidade de gênero, sem sofrer discriminação, temor ou qualquer forma de violência;
5. O direito de expressar livremente sua orientação sexual e identidade de gênero, sem sofrer discriminação, temor ou qualquer forma de violência;
6. O direito à prática sexual com segurança para prevenção da gravidez e de infecções sexualmente transmissíveis (RAMOS, 2022, p. 1137).
Os direitos reprodutivos, por sua vez, implicam em:
1. Direito de escolha, de forma livre e informada, sobre ter ou não filhos, sobre o intervalo entre eles, sobre o número de filhos e em que momento de suas vidas.
2. Direito de acesso a receber informações e o acesso a meios, métodos e técnicas para ter ou não ter filhos;
3. Direito de exercer a reprodução, sem sofrer discriminação, temor ou violência (RAMOS, 2022, p. 1137/1138).
A diversidade na efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos de um indivíduo, que de forma alguma se resume à prática sexual ou a efetiva reprodução humana, permite aferir a sua posse por todo e qualquer indivíduo.
Em 2017, através de Nota Pública, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), como órgão colegiado federal que atua na promoção dos direitos humanos das crianças e adolescentes, se manifestou pela afirmação dos direitos sexuais e reprodutivos infantojuvenis. Aqui se destaca os pontos que mais podem contribuir para a presente discussão, no entanto, conclama-se o leitor a acessar a nota em sua integralidade.
No item 4 traz como uma de suas premissas a Declaração Internacional dos Direitos Sexuais, que contribui reconhecendo os direitos das mulheres e das meninas como direitos humanos universais e afirmando "que os direitos sexuais são patrimônio inalienável de todos os seres humanos e que sua promoção e proteção é de responsabilidade primordial dos governos" (CONANDA, 2017).
Partindo daí reafirma "o compromisso do Estado em garantir o pleno desenvolvimento da criança e do adolescente, respeitando o exercício de seus direitos, dentre os quais, seus direitos sexuais, em consonância com seu desenvolvimento biopsicossocial" e conclama todos os setores da sociedade e governo, aqui plenamente alinhado a diretiva constitucional do artigo 227:
[A] adotarem medidas preventivas para proteger crianças e adolescentes de toda forma e maltrato, abuso sexual, exploração, tráfico e violência, e que principalmente garantam a todas as crianças e adolescentes a possibilidade de se desenvolverem de forma integral incluindo o desenvolvimento da sexualidade (CONANDA, 2017).
Aqui identifica-se como a recomendação mais significativa da nota a dirigida ao Estado brasileiro, reafirmando o seu dever não somente de abstenção de violação, mas também de fomento da efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes, principalmente através da educação e da capacitação de seus agentes públicos.
Se dirige não somente aos agentes do Sistema de Saúde e da Assistência Social, mas também ao Sistema de Justiça brasileiro ao:
Recomendar que o Estado Brasileiro proporcione educação e capacitação sobre gênero, direitos humanos, inclusive direitos sexuais e reprodutivos, a servidores públicos, incluindo policiais (civis, militares, federais) profissionais de saúde e da assistência social, trabalhadores do sistema de justiça, da segurança pública, professoras/es de todos os níveis do sistema educativo, membros do Parlamento brasileiro e todos os atores do sistema de garantia de direitos, para evitar, dentre outras, ações e procedimentos equivocados por razão de desconhecimento sobre questões afetas à sexualidade (CONANDA, 2017).
O CONANDA, através do referido item, faz essencial destaque aos equívocos relacionados ao conceito de sexualidade, ponto a ser abordado posteriormente como incitador de pânico moral e obstáculo à plena garantia de direitos infantojuvenis:
[C]onforme Favero, 2007, o conceito de sexualidade é equivocadamente confundido com o do sexo propriamente dito. Porém, são duas coisas distintas. Sexualidade é um termo complexo, amplo, abrangente e que engloba inúmeros fatores, portanto não se resume a um conceito único, tampouco pode se restringir à relação sexual. Portanto, tais equívocos incorrem em medidas que reduzem o tema à prática de ato sexual e, o que é mais grave ainda, relaciona quaisquer iniciativas de discussão, formação e capacitação sobre o assunto ao crime de estupro ou incitação a ele (CONANDA, 2017).
Seguindo para uma abordagem interdisciplinar, ao discutir os avanços e entraves na temática, Carvalho et al. (2012, p. 71) pautam o início do debate na deslegitimação da infância e adolescência como um grupo detentor de tais direitos, movimento promovido por "dispositivo médico e familiar" na passagem do século XVIII para o século XIX. As autoras tomam Foucault e exemplificam esta orientação comportamental como um “segredo universal, o segredo compartilhado por todo mundo, mas que ninguém comunica a ninguém” ( FOUCAULT, 2001, p. 74).
Já introduzindo brevemente o posicionamento do prejuízo da moralidade social na efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes, as autoras pautam-se em Ariés para identificar o ideal da infância na sociedade moderna e a dissociação deste grupo etário de discussões que envolvam a sexualidade:
É nessa mesma época que a ideia de infância se consagra na sociedade ocidental moderna e com ela elege-se a sexualidade como o grande divisor de águas entre os universos infantil e adulto (Ariès, 1981). Como mal a ser expurgado da vida das crianças, a sexualidade passa a ser perseguida e proibida por moralistas e confessores em nome da preservação da inocência infantil, atributo que institui a infância na modernidade (CARVALHO et al., 2012, p. 71).
E, por fim, afirmam: "Neste sentido, percebe-se que a sexualidade infantojuvenil, por vias distintas, é objeto de perseguição disciplinar"(CARVALHO et al., 2012, p. 71).
A centralidade da discussão elaborada por Carvalho et al., que se objetiva aqui dar destaque, é a prejudicialidade de conceber direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes apenas pela via da violação. Exalta-se uma perspectiva moral destes direitos em detrimento da efetiva proteção do público infantojuvenil.
As autoras realizam uma importante cisão entre sexo, sexualidade e direitos sexuais, própria do campo da psicologia, do qual fazem, e que aqui auxilia argumentativamente no seguinte sentido:
A dificuldade de compreender as distinções entre sexo, sexualidade e direitos sexuais endossa o projeto negativista (baseado tão somente nas violações) que rondam os direitos sexuais de crianças e adolescentes. (...). Podemos verificar que a visão corrente que não permite indissociar genitalidade e sexualidade alimenta o “pânico moral” que ronda crianças e adolescentes em relação à segunda, fazendo com que o comportamento sexual genital seja considerado a única via possível de relação destes sujeitos com sua sexualidade (CARVALHO et al., 2012, p. 72).
Defende-se, dessa forma, que o pânico moral e o rechaço social pela concepção de crianças e adolescentes como detentores de direitos sexuais e reprodutivos pode ser interpretado como fomentador de dois fenômenos: A vulneração de crianças e adolescentes, intensificando situações de risco para a violação de seus direitos sexuais e reprodutivos; E a obstaculização da efetivação destes direitos, mesmo em situações em que já se contempla a existência de aparelhos administrativos e judiciais para isto, por exemplo, o abortamento legal.
As autoras afirmam a necessidade de compreensão de crianças e adolescentes como sujeitos dotados de autonomia sexual, sendo este um processo que ocorre no cotidiano a partir de dois fios condutores: proteção e liberdade(CARVALHO et al., 2012, p. 84), posicionamento ao qual também se alinha o presente artigo.
Por fim, e neste sentido, vertem para sua argumentação final, asseverando caber aos adultos e às instituições de defesa de crianças e adolescentes não se omitirem diante da "pluralidade de ser de crianças e adolescentes" e afirmarem estes direitos, em sua via positiva e negativa, "fundamentando relações não pautadas meramente em mecanismos disciplinadores e moralizantes, mas numa prática implicada e crítica dos saberes e experiências que dizem respeito ao escopo sexual" (CARVALHO et al., 2012, p. 84).
Finalmente, partindo para o que se contempla como o resultado lastimável de uma política social de deslegitimação de crianças e adolescentes como detentoras de direitos sexuais e reprodutivos e omissão do Estado e da sociedade na reafirmação destes direitos, linha argumentativa traçada até o momento, segue-se para a exposição dos dados colhidos no DATASUS.
Entre 2020 e 2021 houve um aumento de 150% nas denúncias[1] e 195% nas violações[2] aos direitos sexuais de crianças e adolescentes no Brasil, orientando esta análise para uma perspectiva maranhense e observando o mesmo período, se obtém um aumento de 132% nas denúncias e um aumento de 189% nas violações aos direitos sexuais deste mesmo grupo vulnerável.[3]
Vale explanar o interesse da pesquisa em destacar, ainda que brevemente, os resultados maranhenses. Além de ser o Maranhão o estado com o segundo pior indicador de desenvolvimento humano do país, ficando em penúltimo com um com índice de 0.687 (em comparação ao primeiro lugar, Distrito Federal, com 0.850), também é o estado natal da autora e local em que desenvolve a maior parte de suas pesquisas na área da infância e juventude (ATLAS BR, 2017).
Seguindo e identificando gênero e idade como fatores de vulnerabilidade ao abuso sexual, a faixa etária de 12 aos 14 anos aparece como a mais vulnerável, e dentro deste grupo etário o gênero feminino dispara como o mais vulnerável: Das 5.408 denúncias feitas ao Disque 100 em 2021, em âmbito nacional, 4.923 eram adolescentes do sexo feminino (MMFDH, 2021).
Os resultados apresentados extinguem margem para qualquer dúvida quanto à crise na efetivação dos direitos sexuais de crianças e adolescentes. O abuso sexual, em números alarmantes e crescentes, é uma realidade brasileira.
2.Abortamento legal: um direito não efetivado
O artigo 217-A do Código Penal define como estupro de vulnerável conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso com menor de 14 anos. Não havendo abertura para a apuração de consentimento, visto que este instituto não existe dentro desta faixa etária. O mesmo Código Penal, em seu artigo 128, II, afirma que não se pune o aborto se a gravidez resulta de estupro.
Desta feita, tendo sido destacado o enorme número de meninas abusadas sexualmente, em âmbito maranhense e nacional, e considerando os dispositivos penais elencados, há de se pensar que diversas meninas ficam grávidas e consequentemente uma parte destas opta pelo aborto legal.
Em 2020, último período disponível no DATASUS, 17.579 meninas entre 10 e 14 anos pariram, a região com o maior número de ocorrências foi o Nordeste, com um total de 6.822 casos, e nesta região o Maranhão ocupa local de destaque ficando em segundo lugar em número de crianças/adolescentes mães, com um total de 1.287 casos (SINASC, 2020).
Importante ressaltar que, considerando os dispositivos penais já expostos, em todas estas ocorrências as crianças e adolescentes grávidas tinham direito ao aborto legal, visto a presunção de estupro.
Partindo então para os números em que esse direito ao aborto foi efetivado, no mesmo período e na mesma faixa etária, o Brasil registrou apenas 86 ocorrências de abortos por razões médicas (aborto legal) e o Maranhão nenhuma (SIH/SUS, 2020).
Questiona-se, desta forma, o que estaria obstaculizando a efetivação do direito ao aborto legal, considerando a demonstrada discrepância evidente entre os números de abuso sexual, gravidez na infância e aborto legal, em uma faixa etária em que o estupro é presumido diante da vulnerabilidade.
2.1. Judicialização do direito ao abortamento legal: Possíveis causas
Ao investigar como o aborto legal na infância é retratado pela imprensa escrita brasileira, Fonseca et al. produziram interessante pesquisa para a identificação dos fatores responsáveis por esta obstaculação da efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual.
Pode-se afirmar como ponto fulcral, originando as outras diversas ramificações a serem apresentadas como obstáculos, o fato de estarmos inseridos em uma "sociedade adulto-androcêntrica", pautados em nossa vivência, em tudo que a compõe, por uma "assimetria de poder de gênero e geração", ocasionando uma verdadeira "naturalização da violência contra as meninas" (FONSECA et al., 2022, p.6).
É naturalizado que uma menina sofra violências, micro e macro sexismos, ao longo do seu desenvolvimento como indivíduo. A menina é socializada e moldada para estar pronta para receber estas micro e macro violências, ocorre que eventualmente os frutos dessa violência não são apenas cicatrizes psicológicas e físicas, mas também uma gestação.
A pesquisa de Fonseca et al. segue para identificar ações específicas de obstaculização, dando importante destaque para o papel desempenhado pelos agentes públicos diante de uma criança gestante que deseja o abortamento legal, conforme já demonstrado, um direito.
Afirmam as autoras que "o conteúdo da legislação brasileira não se expressa de forma semelhante no discurso dos agentes públicos". Aqueles que deveriam ser os responsáveis pela efetivação do direito da criança ao abortamento legal e atuar em diretivas principiológicas de melhor interesse do infante, se manifestam contra esse direito, utilizando da máquina pública, inclusive, na criação destas barreiras, objetivando o avanço da gestação e impossibilidade de realização do aborto (FONSECA et al., 2022, p.6).
As autoras constatam "desrespeito à proteção e à garantia dos direitos da criança, tendo havido vários pronunciamentos, especialmente vinculados à instituições religiosas, reforçando a influência da religião sobre o discurso político, como forma de legitimá-lo" (FONSECA et al., 2022, p. 5).
Há uma verdadeira legitimação de um discurso conservador e religioso, por parte de agentes públicos durante o exercício de suas funções, em detrimento à legislação brasileira e às garantias estabelecidas em nível constitucional e estatutário. O discurso se materializa em uma barreira (FONSECA et al., 2022, p. 6).
A maior parte dos discursos dos agentes públicos responsabilizou o sistema de justiça por assegurar o direito ao aborto, criminalizando-o, tendo em vista a defesa da vida do nascituro e a existência de recursos que poderiam dar con-tinuidade à gestação e à responsabilização pela criança, como a doação, por exemplo. Não foi possível mensurar em que medida o posiciona-mento expresso nesses discursos influenciou a opinião pública, entretanto, uma parcela dos profissionais que atuavam na rede de proteção mostrou-se contrária à concretização do aborto, tanto no âmbito municipal quanto no estadual (FONSECA et al., 2022, p. 6).
As autoras ainda constroem um caminho de vozes violadoras, traçando como o desrespeito aos direitos sexuais e reprodutivos se materializou em obstáculos à plena proteção integral da criança no caso em estudo.
A primeira voz violadora foi a do autor da violência sexual, resultando em uma gravidez indesejada, impondo-se através de ameaça e possibilitando sucessivos episódios de violação. A segunda voz violadora novamente se sobrepôs à autonomia da criança, através dos profissionais de saúde e assistência social que realizaram o primeiro atendimento. Foi considerado que, "de acordo com o protocolo de atendimento do hospital em tela, a interrupção da gestação não poderia ser realizada, por força de lei. Além disso, afirmaram que a gravidez não representava um risco de vida para a menina" (FONSECA et al., 2022, p. 7).
E como terceira voz, as autoras apontam o próprio Estado brasileiro, principalmente pelos Ministérios da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) e da Saúde (MS), naquele "ficou patente o envio ao município de um grupo de pessoas para acompanhar e assegurar a continuidade da gestação, impedindo o aborto", e neste "foi identificada omissão, pois não houve qualquer pronunciamento oficial em relação ao caso" (FONSECA et al., 2022, p. 7).
Fornari et al. chegaram à conclusões semelhantes ao estudar o mesmo caso, identificando uma atuação deficitária do sistema de garantia de direitos, em detrimento do estabelecido em legislação protetiva, privilegiando os desejos dos adultos envolvidos e não da autonomia da criança violentada:
Além da atuação deficitária, o caso revela o cerceamento de direitos garantidos legalmente, identificado pela ausência de proteção contra a violência sexual e pelo atendimento conduzido conforme o desejo dos adultos, representados por agentes governamentais e profissionais da rede intersetorial. O posicionamento contrário ao aborto manifestado por uma parcela dos profissionais da rede intersetorial e dos agentes públicos foi influenciado por uma perspectiva ideológica alicerçada no fundamentalismo religioso. Isso revela que, na prática, as conjecturas pessoais foram sobrepostas aos direitos previstos pela legislação brasileira. [O] Estado brasileiro reconhece o problema da violência sexual contra a criança e propõe ações para o seu enfrentamento. Entretanto, o que se verifica na realidade concreta é a omissão da gestão pública na implementação dessas ações (FORNARI et al., 2022, p. 4-5).
No caso estudado pelas autoras, uma criança gestante após violência sexual, a discussão foi conduzida pelo Estado brasileiro em uma perspectiva de privilégio à criminalização da interrupção da gravidez, em detrimento à violência sexual vivida pela criança e da reparação à ofensa aos seus direitos sexuais e reprodutivos.
Apesar de ser um direito da criança gestante, o abortamento legal foi pautado, pelo Estado e pela maioria dos agentes públicos envolvidos, como um ato ético e moral:
Ao reconhecer o aborto como um ato ético e moral, a legislação deveria sobretudo proteger a vítima e não desconsiderar sua vontade, superando a ideia de que se trata de uma mera decisão pessoal de outrem ou de um procedimento meramente médico, para ser entendido como um ato social, vinculado aos direitos sexuais e reprodutivos (FONSECA et al., 2022, p. 8).
Por todo o exposto, posiciona-se aqui no sentido de que a judicialização da efetivação de direitos humanos, em especial o direito sexual e reprodutivo ao abortamento legal, ser uma consequência da atuação deficitária de diversos agentes públicos, que agem conduzidos por ideologias conservadoras, pautas morais e em ausência de laicidade, apartando-se do seu dever geral de cuidado e de garantia da efetivação dos diversos direitos humanos infantojuvenis, agindo ativamente e manifestando-se pela não ocorrência do abortamento legal.
As barreiras impostas para o exercício do direito ao abortamento legal, a condução da criança ou adolescente gestante para a judicialização, como única possibilidade de efetivação de um direito negado, são interpretados como fatores que confirmam a hipótese inicial do presente artigo: De fato, pode-se afirmar que a necessidade de judicialização para a efetivação de direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes acaba por dissuadir estas meninas e suas famílias da realização do aborto legal, acrescentando ao abuso sexual sofrido, nuances de violência institucional pelo Sistema de Justiça, além de uma maternidade compulsória.
2.1.1. Consequências da judicialização da infância e o diálogo institucional como ferramenta
Aqui vale fazer breve referência aos estudos de Flávia Cristina Silveira Lemos acerca da crescente judicialização da infância. A autora, que não aborda a temática somente a partir da perspectiva da efetivação do direito ao abortamento legal, define o fenômeno como uma transformação de um amplo campo de práticas protetivas da infância em "encomendas dirigidas ao Poder Judiciário diretamente como se este fosse a primeira e única instância responsável pelo cuidado desse segmento da população" (LEMOS, 2014, p. 26).
Além de o rompimento com um paradigma menorista ter representando também o rompimento com o protagonismo do judiciário como principal (ou único) protetor (e ditador) da infância e juventude, havendo uma retomada deste posicionamento menorista com uma judicialização cada vez mais frequente da efetivação dos direitos humanos da infância, o posicionamento do judiciário, quando buscado, nem sempre é garantista.
Em artigo que questiona se somos menoristas enrustidos, Enio Vieira Jr. dá destaque a acórdãos e demais decisões judiciais, além de manifestações do Ministério Público, da Defensoria Pública e de advogados, que, sustentados em uma aparente aplicação da Doutrina da Proteção Integral e do Princípio do Melhor Interesse dos infantes, "acabam mais por violar os direitos e garantias das crianças e adolescentes do que propriamente promovê-los" (VIEIRA JR., 2018, p. 219).
O autor relembra ainda Amaral e Silva, que há 20 anos já denunciava um Sistema de Justiça que interpreta o Estatuto da Criança e do Adolescente com viés menorista:
As novas disposições, garantistas e responsabilizantes do Estatuto continuam a ser interpretadas com os mesmos princípios simplistas e autoritários da antiga postura.
A “proteção”, o “superior interesse”, o “bem estar da criança e do adolescente”, a “reeducação”, a “ressocialização” justificam tudo. Salvo exceções, sentenças, acórdãos, pareceres, defesas, recursos, relatórios, estudos de caso, diagnósticos, refletem os vieses do sistema “protetor” onde os adolescentes, ditos infratores, são “protegidos”, “reeduca-dos”, “ressocializados”.
Se o sistema é protetor. Se todos os atores processuais e administrativos buscam o “melhor interesse” do adolescente [...] não há necessidade de grandes e profundas justificativas (AMARAL E SILVA, 2002, p. 08-09 In VIEIRA JR., 2018, p. 219).
Em 2014 Lemos ecoa a crítica de Amaral e Silva e denuncia como um segundo movimento da judicialização a "invasão do Poder Judiciário em todas as esferas de nossas existências em nome da defesa, proteção e garantia de direitos de crianças e de adolescentes". São criados paradoxos, que afirmam ser a inflação jurídica a ferramenta para efetivação dos direitos humanos da infância, da proteção integral, sendo necessária, portanto, a "intensificação da lei, das penas e medidas judiciais aplicadas a todos os acontecimentos que dizem respeito ao atendimento de crianças e adolescentes" (LEMOS, 2014, p. 26).
A autora também aponta outro paradoxo como consequência da judicialização, desta feita diretamente ligado a respostas às violações de direitos humanos de crianças e adolescentes, em que "qualquer situação de ameaça e de violação deverá ser imediatamente levada ao Poder Judiciário ou aos equipamentos de normalização que estão nas adjacências do mesmo, articulando normas e leis" (LEMOS, 2014, p. 26).
Como consequência direta deste movimento, e que aqui percebe-se como o resultado observado no caso de garantia de abortamento legal apenas pela judicialização, estudado por Fonseca et al. e Fornari et al, Lemos destaca a burocratização e inefetividade da proteção, além da fragilização da rede de garantia de direitos:
Acredito que esta situação pouco permite proteger de fato a criança e o adolescente e acaba burocratizando muito a atenção, fragilizando a rede de garantia de direitos ao potencializar mais uma de suas esferas em detrimento das outras. A judicialização aumenta os índices de encarceramento e pouco favorece a afirmação da criança e do adolescente como sujeito de direitos, pois acaba por torná-los mais objetos das práticas jurídicas do que possibilita sua proteção efetiva pautada em princípios mais democráticos e que não operem pela lógica punitiva (LEMOS, 2014, p. 29).
Com a intenção de apresentar possível ferramenta para dirimir os efeitos nocivos de uma crescente judicialização da infância, faz-se referência aos Diálogos Institucionais, nos termos apresentados por André Carvalho Ramos. Destaca-se, no entanto, que de maneira alguma esta ferramenta solucionaria todas as problemáticas apresentadas no presente artigo, tais como uma rede de proteção com atuação deficitária e agentes públicos pautados por ideários conservadores e pelo adultocentrismo.
De acordo com a crítica de Ramos, a judicialização para a concretização de direitos humanos pode resultar em uma supremacia do Poder Judiciário, em face dos demais poderes (2022, p. 165). E, direcionando para a crítica principal do presente estudo, uma supremacia da judicialização em detrimento dos demais equipamentos da rede de garantia de direitos da infância e juventude.
O autor destaca como consequência direta desta supremacia um efeito backlash, de deslegitimação democrática na proteção dos direitos humanos:
Dentre os prejuízos, a intensa judicialização dos direitos humanos pode ser interpretada como ativismo judicial indevido, contrário a separação dos poderes e oposto à visão majoritária dos eleitores, desencadeando o efeito backlash. O backlash na área dos direitos humanos consiste na reação política adversa após decisão judicial favorável a um determinado tema de direitos humanos visto como controvertido (RAMOS, 2022, p. 165).
E como exemplo evidente de um tema em direitos humanos visto como controvertido temos o direito ao abortamento legal em caso de uma criança gestante.
O diálogo institucional, não apenas entre os poderes legislativo, executivo e judiciário, mas também entre as diversas camadas da rede de garantia de direitos da infância e a sociedade em geral, é apresentado como uma ferramenta para "evitar-se o backlash por meio do envolvimento da sociedade na construção da decisão judicial e ainda expondo continuamente seus efeitos positivos" (RAMOS, 2022, p. 165).
CONCLUSÃO
O que se objetivou demonstrar desde o início do presente estudo foi a importância do reconhecimento da criança e do adolescente como plenos sujeitos de direito, sem restrições, ou seja, plenos detentores de todos os direitos humanos. O reconhecimento de uma criança como um indivíduo parcial, a coloca em situação de extrema vulnerabilidade, não autonomia, retornando, ainda que parcialmente, ao papel que lhe cabia em uma Doutrina da Situação Irregular, o de objeto de direito.
Afastar-se de uma perspectiva adultocêntrica permite apreender que crianças e adolescentes são detentores de direitos sexuais e reprodutivos, conferindo-lhes mais um fator de proteção, a autonomia através da escolha, como indivíduos completos que são. Esta mencionada nociva perspectiva é trazida como um dos fatores responsáveis pela polemização da efetivação de direitos sexuais e reprodutivos de meninas grávidas, através do abortamento legal.
A judicialização do direito de meninas ao abortamento legal é originada na obstaculização da efetivação deste direito por atores, agentes públicos ou não, que agem pautados por uma noção de crianças e adolescentes como sujeitos parciais de direito, orientados por ideologias conservadoras e pautas morais, que resultam em uma condução adultocêntrica dos mecanismos protetivos para meninas grávidas.
Cita-se, novamente, que a hipótese levantada inicialmente pode ser confirmada, afirmando que a necessidade de judicialização para a efetivação de direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes acaba por dissuadir estas meninas e suas famílias da realização do aborto legal.
Por fim, após esta constatação e considerando ser a infância e a adolescência um grupo vulnerável cujos interesses não se efetivam somente pela via judicial, o diálogo institucional entre o judiciário e os outros diversos componentes do Sistema de Garantia de Direitos, se mostra como uma ferramenta valiosa diante da problemática aqui analisada.
REFERÊNCIAS
ATLAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO NO BRASIL - ATLAS BR. Ranking. 2017. Disponível em: <http://www.atlasbrasil.org.br/ranking>.
CARVALHO, Cíntia de Sousa et al. Direitos sexuais de crianças e adolescentes: avanços e entraves. Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 24, n.1, p. 69 – 88, 2012. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/pc/a/BjNb943HwwyXyPB6Vc9rwph/?lang=pt&format=pdf>.
CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – CONANDA. Nota Pública do CONANDA sobre Direitos Sexuais de Crianças e Adolescentes. 2017. Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/conselho-nacional-dos-direitos-da-crianca-e-do-adolescente-conanda/notas-publicas-1/nota-publica-sobre-direitos-sexuais-de-criancas-e-adolescentes_14_12_2017.pdf>.
FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes. 2001.
FONSECA, R. M. G. S et al. Aborto Legal na Infância Retratado Pela Imprensa Escrita Brasileira: Perspectivas para o Cuidado. Revista Baiana De Enfermagem, 36. 2022. Disponível em: <https://doi.org/10.18471/rbe.v36.47345>.
FORNARI, LF et al. Legal abortion in childhood: the official discourse and the reality of a Brazilian case. Rev Bras Enferm. 75(6):e20210946. 2022. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0946pt>.
LEMOS, Flávia Cristina Silveira. A judicialização da infância e seus impactos na vida das crianças e suas famílias. [Entrevista concedida à] Equipe Editorial da Revista DESidades. Rio de Janeiro, nº 2, ano 2, p. 25-29, mar. 2014. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/desi/v2/n2a04.pdf>.
MINISTÉRIO DA MULHER, FAMÍLIA E DIREITOS HUMANOS - MMFDH. Painel da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos. 2021. Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/ondh/painel-de-dados>.
RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 9ª ed. - São Paulo: SaraivaJur, 2022.
SISTEMA DE INFORMAÇÃO SOBRE NASCIDOS VIVOS - SINASC. Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos – Sinasc - 1996 a 2020. 2020. Disponível em: <https://opendatasus.saude.gov.br/dataset/sistema-de-informacao-sobre-nascidos-vivos-sinasc-1996-a-2020>.
SISTEMA DE INFORMAÇÕES HOSPITALARES DO SUS – SIH/SUS. Sistema de Informações Hospitalares do SUS. 2020. Disponível em: <https://ces.ibge.gov.br/base-de-dados/metadados/ministerio-da-saude/sistema-de-informacoes-hospitalares-do-sus-sih-sus.html>.
VIEIRA JR., Enio Gentil. Reflexões acerca da produção judicial na Justiça da Infância e Juventude: Somos menoristas enrustidos?. REVISTA DA ESMESC, v.25, n.31, p. 217-237. 2018. Disponível em: <https://revista.esmesc.org.br/re/article/view/190/164>.
[1] Denúncias: quantidade de relatos de violação de direitos humanos envolvendo uma vítima e um suspeito, uma denúncia pode conter uma ou mais violações de direitos humanos.
[2] Violações: qualquer fato que atente ou viole direitos humanos de uma vítima.
[3] Denúncias e violações apuradas através de relatos ao serviço do Disque 100. Números do Painel da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Filtro de pesquisa utilizado: Grupo vulnerável - violência contra crianças e adolescentes; Espécie de violação - categoria liberdade + categoria sexual (física e psíquica).
Assessora Jurídica do Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude do Ministério Público do Estado do Maranhão. Especialista em Direito de Família, Infância e Juventude pela UNDB (2020). Mestranda em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP (2024). Pesquisadora da infância e juventude.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, CAMILA COSTA REIS. Judicialização e efetivação de direitos sexuais e reprodutivos infantojuvenis: reflexões sobre o aborto legal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 fev 2023, 04:54. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /61110/judicializao-e-efetivao-de-direitos-sexuais-e-reprodutivos-infantojuvenis-reflexes-sobre-o-aborto-legal. Acesso em: 28 dez 2024.
Por: Filipe Luiz Mendanha Silva
Por: RAPHAELA NATALI CARDOSO
Por: WALKER GONÇALVES
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Mirela Reis Caldas
Precisa estar logado para fazer comentários.